quinta-feira, 30 de abril de 2015

Com a visão além do alcance

A luz está intimamente ligada à maneira como compreendemos e interagimos com a natureza. É através dela que as pessoas - com boa visão - obtêm as primeiras informações sobre o mundo à sua volta, sem a necessidade de tocar nos objetos que as cercam. Então, desde os primórdios, foram criadas uma infinidade de tecnologias fundamentadas, de uma forma ou de outra, no uso da luz. Tanto que a UNESCO, quando escolheu o tema deste ano, fez menção direta a elas: 2015 é o Ano Internacional da Luz e das Tecnologias Baseadas na Luz. Na postagem deste mês, discutiremos as tecnologias baseadas na luz que ampliaram a nossa visão do Universo.

Os equipamentos desenvolvidos para auxiliar na visualização de um objeto, seja ele muito pequeno ou muito distante, são chamados de instrumentos ópticos, a grande maioria formados por espelhos e lentes. Alguns proveram os elementos necessários para produzir revoluções científicas e outros foram desenvolvidos para trazer-nos conforto ou prazer.

Os primórdios


A inspiração para a fabricação dos primeiros espelhos foi, possivelmente, a superfície da água. Os espelhos são superfícies, geralmente metálicas, que podem refletir a luz num ângulo específico; não absorvem e nem espalham a luz em diversas direções. Os egípcios já produziam espelhos de cobre há mais de seis mil anos atrás. E as aplicações dos espelhos iam além da estética: espelhos côncavos podem, concentrando os raios solares, ser usados para produzir o fogo. Diz a lenda que Arquimedes (287 - 212 a.C.) teria incinerado a frota romana comandada por Marcus Claudius Marcellus (268 - 202 a.C.), mas não teria evitado a posterior derrota de Siracusa, nem a sua morte.

O vidro surgiu por volta do ano de 3.500 a.C., provavelmente, por acidente. Há evidências arqueológicas, no final da Idade do Bronze, tanto na Mesopotâmia, quanto no Egito, que materiais vítreos eram feitos em fornos metalúrgicos. As primeiras lentes teriam sido feitas com cristais de quartzo, por volta de 700 a.C. pelos assírios. Já os gregos antigos tinha sua maneira de produzir lentes de aumento: enchendo esferas de vidro com água.

Empédocles (c 490 - c 430 a.C.) - mais conhecido pela teoria dos quatro elementos (terra, fogo, água e ar) -, já havia afirmado que a luz viaja em linha reta, dando o primeiro passo para a fundação da óptica geométrica. Contudo, ele defendia que raios visuais seriam emitidos dos olhos; raios que se propagariam até os objetos para "tateá-los" e assim trazer-nos sensação da visão. Uma estranha hipótese para os dias de hoje, mas que fazia muito sentido naquela época. Por volta de 300 a.C., o matemático e geômetra grego Euclides (c 325 - c 265 a.C.), trabalhando em Alexandria, escreveu o seu livro Óptica, o mais antigo manuscrito sobre o tema que sobreviveu ao tempo. Ele se aproveitou das ideias de Empédocles, mas foi além, produzindo um tratado com grande rigor matemático. Assim como nos Elementos, Euclides inicia Óptica com um conjunto de definições e postulados. Vejamos os dois primeiros:
"Assumimos que
  1. os raios retilíneos procedentes do olho divergem indefinidamente;
  2. a figura contida em um conjunto de raios visuais é um cone com vértice no olho e base no objeto visto."
Postulado 2 de Euclides, base da teoria da perspectiva.
Então, partindo dos postulados, Euclides demonstra uma série de proposições geométricas,   investigando problemas como a relação entre as distâncias e os tamanhos aparentes dos objetos. Além disso, estuda as formas aparentes de cilindros e cones quando vistos sob diferentes ângulos. O trabalho de Euclides foi tão importante que influenciou muitos pensadores que o sucederam.

Heron de Alexandroa e a eolípia.
Heron  de Alexandria (10 - 80 d.C.) foi um deles. Sábio matemático e hábil engenheiro, é popularmente conhecido pela primeira máquina à vapor documentada, a eolípia, no entanto, esta já era conhecida no século anterior. Em suas obras, descreveu a - também já conhecida - fórmula para o cálculo da área de um triângulo, a regra do paralelogramo para a soma vetorial de velocidades, fez cálculos de centros de gravidade e estudou o funcionamento das engrenagens. No campo da óptica geométrica, escreveu  Katoptrika - chama-se "catóptrica" à parte da óptica que lida com os fenômenos da reflexão e da formação de imagens em espelhos. Neste livro, Heron demonstrou a lei fundamental da reflexão dos raios de luz em espelhos: o ângulo de incidência é igual ao ângulo de reflexão (i=r). Heron utilizou, para isso, um princípio variacional: o caminho percorrido pela luz (desde o objeto, passando pelo espelho e chegando ao olho) se dá através do caminho mais curto. Em seu tratado, estudou também as propriedades e a formação de imagens em espelhos planos e esféricos.

Cláudio Ptolomeu
Outro representante da escola de Alexandria foi Cláudio Ptolomeu (90 - 168 d.C.) que estendeu as pesquisas para o campo da dióptrica, ou seja, o estudo da refração da luz e da formação de imagens quando ela atravessa dois diferentes meios materiais. Ele conduziu experimentos para medir o caminho da luz nas passagens do ar para água, do ar para o vidro e do vidro para a água e apresentou seus resultados no seu livro Óptica, considerado um dos trabalhos mais importantes no ramo antes de Newton - apesar de erroneamente achar que a refração estivesse relacionada aos valores dos ângulos (e não aos dos seus senos, como na lei de Snell) e de ter, supostamente, "cozinhado" os dados para evidenciar a sua teoria.

Novos instrumentos


Cerca de um milênio depois, a Europa atravessava a "Idade das Trevas". Mas pesquisas acerca da natureza da luz permaneciam ativas em outros locais como o Oriente Médio. Nesta época, viveu ali um investigador grandemente homenageado no Ano Internacional da Luz: Abu Ali al-Hasam Ibn al-Haytham, "o físico" Alhazen (965 - 1040), que publicou - por volta de um milênio atrás - os sete volumes do seu Livro da Óptica. Nesta coleção, ele cita, pela primeira vez, as lentes de aumento: vidros biconvexos que utilizou para a magnificar imagens.

      Roger Bacon                      Edward Scarlett

No entanto, a teoria e o uso das lentes para auxiliar as pessoas com fraca visão se deu na Inglaterra do século XIII, com um padre franciscano, conhecido como "Doctor Mirabilis"; seu nome era Roger Bacon (1214-1292). Ele inventou os óculos em 1268, tendo mencionado-os em sua enciclopédia Opus Majus. Os primeiros óculos eram feitos de cristal e montados sobre uma armação de couro ósseo ou metal, na forma de um "v" invertido para ser posto sobre o nariz. Foi somente em 1730 que o óptico Edward Scarlett (1677 - 1743) achou a solução para os óculos deixarem de cair: prendê-los através de hastes laterais às orelhas. E, para evitar o incômodo de se trocar de óculos toda vez que se desejava enxergar de perto ou de longe, Benjamin Franklin (1706 - 1790) inventou, em 1784, as lentes bifocais. Por volta de 1800, os monóculos se tornaram muito popular entre os abastados da Europa.

Estas iluminadas ideias abriram caminho para a invenção de dois novos instrumentos: o microscópio e o telescópio. Instrumentos ópticos que expandiram, de forma sem precedentes, a maneira como enxergamos o mundo. O primeiro permitiu a visão de inúmeras e minúsculas formas de vida: micróbios, bactérias, células, etc. O segundo proveu imagens detalhadas dos astros do sistema estelar, da nossa galáxia e nos levou aos confins do Universo. 

Zacharias Janssen           Anton von Leeuwenhoek               Robert Hooke

Microscópio simples (à esquerda)
 e composto (à direita).
Há dois tipos básicos de microscópios: o simples e o composto. O simples utiliza uma única lente para ampliar a imagem, o composto duas lentes. Em 1608, Zacharias Janssen (1580 - 1638) constrói o primeiro microscópio composto. Em 1665, em seu livro Micrographia, Robert Hooke (1635 - 1703) utiliza um microscópio composto para examinar amostras de cortiça e as descreve com uma coleção de células. Em 1674, Anton van Leeuwenhoek (1632 - 1723) relata a descoberta dos protozoários. Mas as aplicações dos microscópios vão além das ciências biológicas: na área da física são utilizados para a investigação das propriedades físicas dos materiais, na química para o estudo de cristais, na geologia para a análise da composição mineralógica e textura de rochas. Além disso, os microscópios são usados em diagnósticos médicos e em diversas aplicações industriais.

     Hans Lippershey                    Galileu Galilei

A invenção do telescópio é atribuía ao óptico Hans Lippershey (1570 - 1619), que depositara, em 1608, o primeiro pedido de patente que se tem notícia para o aparato - o objetivo do telescópio é produzir a máxima aproximação de objetos distantes. Ao tomar conhecimento da invenção, Galileu Galilei (1564 - 1642) apressou-se em aperfeiçoar o instrumento. E foi o primeiro a apontá-lo para o céu, tendo, com isso, descoberto uma "quantidade de estrelas que quase não se pode contar", os satélites galileanos de Júpiter (Io, Europa, Calisto e Ganimedes) e que a Lua possui superfície irregular. Suas descobertas - que contradiziam os ditos aristotélicos - foram relatadas no livro Mensageiro Sideral, de 1610. Posteriormente, viu as manchas solares, que Vênus apresentava fases crescente e minguante e que Saturno tinha saliências laterais - os anéis que imaginou, erroneamente, que fossem satélites.

   Willebrord Snellius                             René Descartes

A lei da refração - em sua formulação aceita atualmente (n1sen i = n2sen r) - foi descoberta por Willebrord Snellius (1580 - 1626), em 1621. Posteriormente, René Descartes (1596 - 1650) a descobriu independentemente - tanto que, até hoje, muitos livros a citam como lei de Snell e Descartes - e mostrou geometricamente que o ângulo subentendido entre o olho e o centro de um arco-íris é de 42°.

Isaac Newton             telescópio newtoniano                anéis de Newton

Réplica do telescópio refletor que
Newton demonstrou à Royal Society.
Isaac Newton (1643 - 1727) investigou o fenômeno da refração - vimos anteriormente seus experimentos sobre a dispersão da luz e o experimentum crucis. Ele notou que independentemente da luz ser refletida, refratada, espalhada ou transmitida, ela permanece com a mesma cor. As cores seriam,  na teoria de Newton, características da luz em si e não geradas pelos objetos. Hoje sabemos que ele tinha razão quanto à propagação da luz (e quanto aos fenônemos citados), mas não quanto à geração das cores. Em seus estudos, percebeu que o telescópio refrator sofria com a dispersão das cores, produzindo aberração cromática. Para contornar este problema, Newton desenvolveu o telescópio refletor, ou newtoniano. Até hoje, a geometria básica dos telescópios mais potentes do mundo: um espelho esférico côncavo reflete a luz proveniente de fontes distantes, focalizando-a num pequeno espelho que a reflete para uma lente, a ocular, por onde observa-se a imagem. Newton desbastou suas próprias peças de vidro, controlando a qualidade e os raios de curvatura dos seus espelhos através dos anéis de Newton. Trata-se de um interferômetro no qual a luz passa por um espaço entre uma superfície plana padrão e a superfície curva a ser testada, de acordo com as diferenças de caminho óptico, a luz interfere construtiva e destrutivamente, produzindo franjas cujo espaçamento provê a informação sobre a curvatura. Em 1671, Newton fez uma demonstração do seu telescópio refletor para a Royal Society, quando encorajaram-no a publicar suas notas On Colour (1671). Posteriormente, seus estudos foram expandidos na sua obra Optiks (1704).

Telescópio de Cassegrain.
Em 1672, Laurent Cassegrain (1629-1693) propôs um segundo desenho para o telescópio refletor: um pequeno espelho convexo secundário reflete a luz de volta ao espelho primário que, agora, possui um orifício no centro. 

Lentes acromáticas.
Lentes acromáticas reduzem fortemente as aberrações cromáticas. As primeiras surgiram em 1733, feitas por Chester Moore Hall (1703 - 1771). Mas Hall não publicou sua invenção. Foi John Dollond (1706 - 1761) que tomou conhecimento delas e iniciou a produção de telescópios em escala comercial, a partir de 1758. As lentes acromáticas facilitaram a produção de telescópios que puderam ser feitos mais curtos e funcionais.



John Hadley
Agora, o telescópio newtoniano reduziu o problema da aberração cromática, mas não o da aberração esférica: raios de uma fonte distante, que chegam paralelos ao eixo óptico, não convergem num ponto focal, mas na chamada região de mínima confusão - aplicando-se a lei da reflexão (i=r) verifica-se isso facilmente. Este tipo de aberração, por sua vez, é corrigido com um outro formato de espelho: o parabólico. Os primeiros telescópios feitos com espelhos parabólicos são de 1721, desenvolvidos por John Hadley (1682 - 1744). Seus telescópios trouxeram importantes desenvolvimentos, permitindo o aumento dos espelhos e da quantidade de luz coletada.

A era dos grandes telescópios


William Herschel e a construção de seu telescópio.
Aos 19 anos de idade, o compositor William Herschel (1738 - 1822) mudou-se da Alemanha para a Inglaterra para ser professor de música. Mas, a partir do ano de 1766, veio a interessar-se seriamente pela astronomia. Por volta do ano 1774 iniciou sua própria produção de espelhos. Em 1778, ele selecionou, dentre os cerca de 400 que possuía, seu melhor espelho refletor (um com 16 cm de diâmetro), com o qual construiu um telescópio (com distância focal de 2,1 m). Precisamente no dia 13/5/1781, enquanto buscava por estrelas duplas, encontrou um corpo celeste que inicialmente pensou ser uma estrela ou um cometa. Mas, após análises mais detalhadas, verificou que tratava-se de um novo planeta: Urano, o primeiro planeta a ser descoberto através de telescópios. O primeiro planeta, na história da humanidade, descoberto além de Saturno. Hershel também fez outras descobertas importantes: catalogou estrelas duplas, descobriu satélites (dois de Saturno e dois de Urano), mostrou o movimento do Sol através do espaço e a direção para onde o sistema solar se desloca, entre outras. É dele também a descoberta, em 1800, da radiação infravermelha - já citada na postagem do mês passado.

   Carl August von Steinheil           Jean Baptiste León Foucault

Telescópios do Observatório do Monte Wilson:
à esquerda o de 150 cm e à direita o de 250 cm.
Outro importante feito deu-se entre os anos de 1856 e 1857, quando Carl A. von Steinheil (1801 - 1870) e Jean B. Léon Foucault (1819 - 1868) introduziram o processo de depositar uma fina camada de prata sobre os vidros de telescópios. Esta técnica permitiu a produção de espelhos mais duradouros, que podiam ser "recauchutados": de tempos em tempos podia-se retirar a camada de prata velha e redepositar outra sobre o vidro-base. O final do século XIX assistiu a produção de grandes telescópios refletores com esta técnica. E no início do século XX foram construídos grandes observatórios localizados em montanhas altas e remotas, como, por exemplo, o Observatório do Monte Wilson. Este observatório foi projetado para produzir imagens astronômicas de grande resolução. Inicialmente, utilizou-se nele um espelho de 150 cm de diâmetro (1908), depois outro de 250 cm de diâmetro (1917). Foi no Observatório do Monte Wilson que Edwin Powell Hubble (1889 - 1953) descobriu, em 1923, que Andrômeda está a uma distância muito além da dimensão da Via-Láctea - sendo, portanto, uma galáxia independente - e, em 1929, que as galáxias afastam-se umas das outras, provando que o Universo está em expansão. Em 1932, um jovem físico do Caltech, John Donavan Strong (1905 - 1992), produziu a primeira aluminização a vácuo: um vidro-base é posto numa câmara de alto vácuo em que pequenos pedaços de alumínio sofrem a ação de uma alta corrente elétrica, o alumínio, então, é vaporizado e voa pela câmara "pintando" o vidro com alumínio. Esta passou, desde então, a ser a técnica utilizada na fabricação dos espelhos. Em 1948, foi instalado no Observatório Palomar, nos Estados Unidos, o Telescópio Hale com abertura de 5,08 m. Em  1976, o BTA-6, na então União Soviética, com abertura de 6 m. Estes são, até hoje, os maiores espelhos de peça única. Foram superados em abertura somente pelos observatórios Keck-1, no Hawaii, e Gran Telescopio Canarias, nas Ilhas Canárias, ambos com 36 segmentos perfazendo aberturas de, respectivamente, 10 m e 10,4 m.

Telescópio Espacial Hubble.
Digno de nota, também, é o Telescópio Espacial Hubble, um satélite artificial que abriga um espelho de 2,4 m de abertura, capaz de registrar imagens astronômicas no visível e no infravermelho. Ele foi lançado pela NASA, em 24/4/1990, à bordo do ônibus espacial Discovery - tendo completado este mês 25 anos - e está orbitando a 589 km de altitude. Após o início de sua operação foi constatada uma aberração no espelho principal que, por pouco, quase comprometeu o sucesso da missão. Foi necessária uma outra missão, em 1993, especialmente concebida para a reparação, na qual os astronautas fizeram várias "caminhadas espaciais" para realizar os trabalhos. Após a conclusão do reparo, o Hubble produziu imagens espetaculares dos locais mais distantes (e antigos) do Universo. Vou encerrar a postagem deste mês com minhas duas imagens preferidas do Hubble: os Pilares da Criação (grandes nuvens de gás e poeira na Nebulosa da Águia onde estrelas estão em formação) e uma fotografia de campo profundo (uma imagem de centenas de galáxias numa região que, previamente, nenhuma havia sido observada - a abertura angular desta imagem caberia dentro de um canudinho de refrigerante).

Pilares da Criação                                    Espaço profundo

No mês que vem, vamos discutir as cores e as frequências do espectro eletromagnético.

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