domingo, 29 de março de 2015

O quantum de luz

Dando continuidade às postagens sobre o Ano Internacional da Luz, vamos discutir hoje como os estudos sobre a luz nos levaram à compreensão do comportamento quântico da matéria. Enfatizamos, anteriormente, que as discussões acerca do caráter corpuscular ou ondulatório da luz sempre estiveram presentes na história. Por um lado, havia Newton defendendo que a luz seria formada por partículas que pulam dos corpos iluminados e viajam em linha reta, e, por outro lado, pensadores como Descartes, Huygens e outros que defendiam que a luz seria formada por ondas, que espalham-se pelo espaço, produzindo efeitos típicos como a interferência, a difração, etc. Para isso, seria necessário um meio, o éter, que acabou tornando-se obsoleto com a teoria da relatividade.

Mas, Newton realizou uma série de experimentos com a luz que foram relatados em seu livro Optiks (1704). Dentre eles, o fenômeno da dispersão, no qual fez a luz do Sol atravessar um prisma de vidro, decompondo-a nas cores que observamos durante a formação de um arco-íris: vermelha, alaranjada, amarela, verde, azul, anil e violeta. E foi além: posicionou um segundo prisma, invertido com relação ao primeiro, recombinando as cores na cor branca. Este último foi denominado por ele de experimentum crucis, ou o experimento crucial. É dele também o chamado disco de Newton, um disco com faixas coloridas que, quando girado a alta velocidade, dá a ilusão de que as cores recombinam-se formando o branco. Então, é isso: a luz branca é a soma de todas as cores que vemos no arco-íris. E como esta decomposição de cores tinha um certo aspecto "fantasmagórico", os cientistas da época batizaram-na de espectro da luz; e este nome pegou.

Linhas espectrais



Avançamos um século e pouco, até o ano de 1814, quando o óptico alemão Joseph von Fraunhofer (1787-1826) inventou o que hoje chamamos de espectroscópio, acoplando um prisma de vidro a um sistema de lentes. E também fez com que a luz solar passasse pelo prisma. Porém, além do espectro, a novidade relatada por Fraunhofer foi um conjunto de linhas escuras: ele descobriu no espectro do Sol um conjunto de 574 linhas, conhecidas como linhas de Fraunhofer. Especula-se que Newton, talvez, tivesse observado também estas linhas, mas não teria dado muita atenção a elas, imaginando que fossem defeitos no vidro. Mas, Fraunhofer prosseguiu, apontando seu instrumento para as estrelas mais brilhantes do céu noturno (como Sírius), notando, desta vez, conjuntos diferentes de linhas. Ironicamente, um pouco depois (1820), o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857) afirmara: "podemos saber de tudo, menos do que são feitas as estrelas". Mal sabia ele dos resultados de Fraunhofer que, seis anos antes, dava os primeiros passos para a Astrofísica.


O que Fraunhofer não fez foi dar uma explicação inequívoca para as linhas escuras do espectro. Tal explicação teve que aguardar o ano de 1859, quando Gustav R. Kirchhoff (1824-1887) utilizou um bico de Bunsen --- recém-inventado por Robert W. Bunsen (1811-1899) --- para mostrar que as linhas eram as assinaturas dos elementos químicos presentes na fotosfera das estrelas. Ao incendiar um gás (como o hidrogênio, por exemplo) com o bico de Bunsen e fazer a luz gerada por ele atravessar uma fenda e um prisma, observam-se as linhas de emissão do elemento: cada linha tem um frequência (cor) específica, correspondendo a uma possível transição eletrônica neste elemento. E quando este mesmo elemento está presente num fundo de luz branca (com todas as frequências), como a luz das estrelas, o elemento absorve, exatamente, nas mesmas frequências, formando linhas escuras, ou linhas de absorção. Kirchhoff e Bunsen, ao mesmo tempo, fundavam a Espectroscopia e consolidavam a Astrofísica --- apresentando uma forma de sabermos do que são feitas as estrelas.

Linhas de absorção (acima) e de emissão (abaixo) do hidrogênio.

Dentre os espectros de linhas atômicas, o mais simples é o do hidrogênio, observado por Anders J. Angstrom (1814-1874), no ano de 1853. Em 1885, Johan J. Balmer (1825-1898), um professor de matemática, descobriu empiricamente uma fórmula que reproduzia a série:
e, em 1888, Johannes Rydberg (1854-1919) a reescreveu em termos do inverso do comprimento de onda (λ-1):
,
introduzindo a constante de Rydberg, que, para o átomo de hidrogênio, vale: R= 1,09737 m-1. Mas o feito de Rydberg não foi tão-somente inverter a fórmula e sim explicitar que haviam 2 números inteiros nela: o 2 e o n (n > 2), pois, posteriormente, foram descobertas outras transições que satisfaziam a forma generalizada da fórmula: 
,
onde m e n são números inteiros, com n > m. Esta é conhecida como fórmula de Rydberg e Ritz --- Walther Ritz (1878-1909). Então, a série de linhas observada por Angstrom e descritas matematicamente por Balmer correspondem a transições que envolvem o nível m = 2: as linhas de absorção para quando o átomo é excitado do nível 2 a um nível superior e as linhas de emissão para quando o átomo decai para o nível 2 a partir de um nível superior --- porém, aqui, estou antecipando um pouco o modelo, que foi proposto mais adiante. Entre os anos de 1906 e 1914, Theodore Lyman (1874-1954) descobriu no ultravioleta as linhas do hidrogênio que envolvem as transições com o nível m = 1. Posteriormente, foram descobertas outras transições no infravermelho: as chamadas série de Paschen (para m = 3), série de Brackett (para m = 4) e série de Pfund (para m = 5).
Séries de linhas espectrais do hidrogênio.

Faltava ainda dar uma explicação para os números inteiros.

Radiação do corpo negro

Aqueça um metal. Primeiramente, não o veremos brilhar, mas, se aproximarmos a mão, podemos sentir o calor que emana de sua superfície. O que estaremos percebendo é a radiação infravermelha: um tipo de luz com comprimento de onda maior do que os nossos olhos conseguem ver. Mas ela está ali. William Herschel (1738-1822), no ano de 1800, fez a luz branca passar por um prisma e se dispersar. Então, posicionou o bulbo de um termômetro abaixo da linha que podia enxergar a luz vermelha. E notou que o termômetro acusava um aumento na temperatura. Ele havia descoberto a radiação infravermelha.

Espectro de corpo negro.

Então, aqueça o metal mais ainda. Quando a temperatura do metal chegar na casa dos 600 ºC, veremos que ele começa a brilhar com coloração avermelhada. Aquecendo-o ainda mais --- daqui para frente vamos precisar de um forno siderúrgico, mas, de qualquer maneira, não tentem fazer isso em casa! ---, a luz emitida pelo metal passa a tomar coloração alaranjada. Mais ainda, amarelada. Por fim, branco-azulada. Todas essas emissões de luz têm origem térmica, na agitação das moléculas do metal que aumentam com o aumento de temperatura. Vários cientistas, no final do século XIX, procuravam descrever matematicamente tais emissões de radiação pelos metais, mas encontravam sérias dificuldades.

Vamos considerar que toda a radiação emitida resulte das vibrações térmicas. Assim, se radiações externas incidirem nestes corpos, ela será absorvida. Portanto, estamos tratando de corpos negros. Kirchhoff sugeriu (1860) que o problema dos corpos negros pudesse ser modelado matematicamente contando-se as ondas estacionárias numa cavidade com um orifício. Toda a radiação que incide no orifício perde-se dentro da cavidade e a que é emitida deve ser resultado das vibrações dos átomos em suas paredes. Mas, como nas cordas de um violão, que estão presas nas extremidades, procuramos pelos harmônicos: as frequências que formam nós nas pontas e em divisões inteiras da corda (na metade, nos terços, nos quartos, etc.). Estes nós --- pontos sem vibrações --- são gerados pelas ondas estacionárias.

Ondas estacionárias numa cavidade.

Muito bem, Kirchhoff mostrou como poderia-se contar os modos de ondas estacionárias em cavidades, por unidade de frequência e por unidade de volume, procurando descrever matematicamente o problema dos corpos negros. Porém, ao multiplicar as contagens pela energia média que seria atribuída a cada um dos modos --- de acordo com a física clássica --- obtém-se um resultado divergente em altas frequências, isto é, que desvia-se em muito do espectro de corpo negro e tende a infinito. Tal resultado ficou conhecido, posteriormente, como a catástrofe do ultravioleta. Foram pesquisadores como Lord Rayleigh --- John W. Strutt (1842-1919) --- e James H. Jeans (1877-1946) que chegaram a tais fórmulas "catastróficas".

A catástrofe do ultravioleta.

Na mesma época, em 1900, Max Planck (1858-1947) fez um cálculo que resolveria o problema, utilizando-se de princípios da termodinâmica e do eletromagnetismo e assumindo uma nova forma de calcular a energia média dos osciladores na cavidade. Com isto, conseguiu ajustar perfeitamente o seu resultado aos dados experimentais. Basicamente, Planck trocou integrais por somas, supondo que as energias na cavidade não poderiam assumir valores contínuos, mas somente valores discretos. Cada possível emissão foi chamada por ele de quantum de radiação. Planck dava, inadvertidamente, o primeiro passo para o desenvolvimento da Física Quântica. De acordo com sua hipótese, os átomos da cavidade poderiam vibrar somente em frequências (f) proporcionais a níveis quânticos de energia En:
.

A constante de proporcionalidade na fórmula acima é a constante de Planck: h = 6,626 × 10-34 J⋅s. Com a hipótese dos níveis quânticos de energia, Planck conseguiu deduzir uma fórmula para a radiação de corpo negro que ajustava-se muito bem aos dados experimentais, não produzia nenhuma catástrofe nas altas frequências e, ainda, tinha como subproduto a dedução de outras duas leis empíricas: a lei de Stefan-Boltzmann e a lei do deslocamento de Wien. Nas suas palavras, "foi uma tentativa desesperada" de encontrar a fórmula correta. Faltava, novamente, uma explicação para os números inteiros. 

Efeito fotoelétrico

Um metal, quando iluminado por radiação eletromagnética acima de uma certa frequência, emite elétrons de sua superfície. Este é o efeito fotoelétrico, descoberto por Hertz em 1887, quando fez luz incidir sobre um dos eletrodos de um tubo evacuado e notou que a corrente era aumentada pela incidência da luz.

Representação do efeito fotoelétrico (à esquerda); célula fotoelétrica (à direita).

O efeito fotoelétrico foi estudado sistematicamente por Philipp Lenard (1862-1947), nos anos a partir de 1897. Ele descobriu várias peculiaridades no fenômeno. Primeiramente, que havia um limiar de frequências, isto é, se a luz incidente tiver frequência abaixo de um dado valor, o efeito não ocorre. Depois, que a emissão ocorre a alto vácuo, portanto, os portadores de carga não poderiam ser íons gasosos. Ainda, que a ação de um campo magnético no tubo provava que os portadores têm cargas negativas,  que, posteriormente, foram identificados como elétrons e denominados  fotoelétrons. Finalmente, que os fotoelétrons são emitidos com diferentes energias cinéticas, cujo valor máximo varia linearmente com a frequência, e que, para freiá-los completamente, é preciso aplicar-se uma diferença de potencial negativa com valor independente da intensidade da luz incidente.

À esquerda: dependência linear da energia cinética máxima dos fotoelétrons 
com a frequência da luz incidente (com a indicação do limiar de frequências). 
À direita: o potencial de corte (V0) para duas intensidades de luz incidente.

Tais resultados também eram incompatíveis com o esperado de acordo com o eletromagnetismo clássico. A energia contida na luz, comportando-se como onda eletromagnética, deveria ser proporcional à intensidade. Ademais, não deveria existir frequência de corte, pois bastaria esperar um tempo suficientemente grande para a ressonância da onda produzir a ejeção do fotoelétron. Mas, nenhuma das duas coisas jamais foi observada.

Coube a Einstein, em 1905, dar a explicação para o efeito fotelétrico.  Em sua interpretação heurística, retomou em parte a visão corpuscular para a luz de Newton: a luz comporta-se como partícula nas interações com a matéria. Adicionou a ela a hipótese de Planck: a energia que o quantum de luz carrega é proporcional à frequência: E = hf , onde h é a constante de Planck. E supôs que, ao  arrancar um elétron da superfície do metal, o quantum de luz cedia parte da sua energia ao material (Φ). Daí, bastou-lhe escrever uma equação de conservação de energia para poder determinar a energia cinética dos fotoelétrons: K = hf - Φ. Bem, é claro que se a energia gasta para arrancar os fotoelétrons do material fosse mínima (Φ0, chamada de função trabalho), a energia cinética seria máxima (Kmax) e proporcional à frequência. Finalmente, quando os fotoelétrons perdem toda a sua energia no potencial de corte (V0), imediatamente deduz-se a frequência de corte: f= Φ/ h.

Um detalhe: apesar de Einstein ter introduzido na física moderna a ideia de que a luz, nas interações com a matéria, comporta-se como partícula, ele não usou em seus trabalhos o termo fóton, que foi cunhado somente em 1926 por Gilbert N. Lewis (1875-1946).

O modelo atômico de Bohr

Parte da explicação para os números inteiros veio em 1913 com o modelo atômico proposto por Neils Bohr (1885-1962). Seguindo os resultados dos experimentos de bombardeamento de radiações alfa sobre uma folha fina de ouro, realizado por Ernst Rutherford (1871-1937) e seus alunos, este propôs um modelo atômico "planetário": os átomos são compostos por um núcleo de partículas positivas, cerca de dez mil vezes menor, que concentram praticamente toda sua massa, e são circundados por partículas muito mais leves e de carga negativa, os elétrons. Este modelo impôs também sérios problemas para a Física Clássica, já que os elétrons, sendo acelerados pelo núcleo, deveriam emitir radiação eletromagnética até colapsarem nele. Bohr seguiu a ideia de Rutherford, mas, para formular seu modelo, propôs três postulados:
  1. Os elétrons giram em torno do núcleo atômico em órbitas estacionárias, ou seja, não emitem radiação enquanto movimentam-se nessas órbitas. Cada uma das órbitas corresponde a um nível de energia En;
  2. Nas órbitas estacionárias, o momento angular dos elétrons é quantizado, isto é, seu valor é um múltiplo inteiro da constante de Planck normalizada:
    ;
  3. As transições que os elétrons realizam entre os níveis de energia são acompanhadas da emissão ou da absorção de radiação eletromagnética, cuja frequência é proporcional à diferença de energia entre os níveis: ΔE = h f .
Partindo dos seus postulados, Bohr pôde calcular as energias En e os raios rn de cada nível atômico, além das frequências de emissão ou absorção para as transições entre os níveis. Com este último cálculo, obteve a constante de Rydberg e todas as séries de linhas espectrais: a série de Lyman corresponde às transições de e para o nível n =1, analogamente, a de Balmer para o nível n = 2, a de Paschen para o nível n = 3, a de Brackett para o nível n = 4 e a de Pfund para o nível n = 5.

Bohr nos forneceu, assim, o modelo ainda aceito atualmente para um dos principais mecanismos de produção de radiações eletromagnéticas: as transições entre níveis quânticos têm como fenômeno associado a emissão ou a absorção de radiação. Quanto maior a diferença de energia, maior a frequência. As transições atômicas produzem linhas, tipicamente, de luz ou de radiações infravermelhas e ultravioletas. As transições nucleares produzem linhas de energia mais alta:  raios-X ou raios gama.
Exemplos de transições atômicas (de acordo com o modelo de Bohr).

A dualidade onda-partícula

Assim, os estudos acerca das linhas espectrais atômicas, do espectro de corpo negro e do efeito fotoelétrico levaram a formulação do conceito de fóton, o quantum de luz. Contudo, o sucesso da teoria eletromagnética na explicação dos fenômenos ondulatórios da luz garantiu que a mesma não fosse abandonada. E, sim, que se formasse um conceito de comportamento dual: sob certas condições a luz se comporta como onda, sob outras como partícula.

Então, se aquilo que se imaginava ser onda poderia também ser partícula, por quê o que se imaginava ser partícula não poderia também ser onda? Foi fazendo-se esta pergunta que Louis de Broglie (1892-1987) --- um ex-estudante de história que trocou sua carreira pela física ---, propôs, em sua tese de doutorado no ano de 1924, que os elétrons poderiam se comportar como onda. Ele formulou uma equação que conectava uma propriedade ondulatória (o comprimento de onda, λ) a uma propriedade corpuscular (o momento linear, p = mv). Essa conexão se dá através da constante de Planck:
.

Estudando-se, portanto, algumas das características da luz foram produzidos os conceitos essenciais para o desenvolvimento da física quântica, a teoria que explica o comportamento da matéria a nível molecular, atômico e subatômico. Não vou entrar em muitos mais detalhes, pois, por si só, valeriam uma outra postagem --- um dia, posso escrever a respeito ---, além do assunto fugir ligeiramente do tema: luz.

Na postagem do mês que vem, veremos algumas das tecnologias baseadas na luz, que expandiram a nossa visão do Universo. 

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